quarta-feira, 11 de abril de 2007

em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

pág. 7 (início)
"Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheias na lezíria."

pág. 19
"Abriu uma das janelas, olhou para fora. A chuva parara. O ar fresco, húmido do vento que passara sobre o rio, entra pelo quarto dentro, corrige-lhe a atmosfera fechada, como da roupa por lavar em gaveta esquecida, um hotel não é uma casa, convém lembrar outra vez, vão-lhe ficando cheiros deste e daquela, uma suada insónia, uma noite de amor, um sobretudo molhado, o pó dos sapatos escovados no momento da partida, e depois vêm as criadas fazer as camas de lavado, varrer, fica também o seu próprio halo de mulheres, nada disto se pode evitar, são sinais da nossa humanidade."

pág. 21
"Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser."

pág. 39
"As coisas da fisiologia são complicadas, deixemo-las para quem as conheça, muito mais se ainda for preciso percorrer as veredas do sentimento que existem dentro dos sacos lacrimais, averiguar, por exemplo, que diferenças químicas haverá entre uma lágrima de tristeza e uma lágrima de alegria, decerto aquela é mais salgada, por isso nos ardem os olhos tanto."

pág. 43
"A chuva recomeçou a cair, faz sobre os telhados um rumor como de areia peneirada, entorpecendo, hipnótico, porventura no seu grande dilúvio terá Deus misericordioso desta maneira adormecido os homens para que lhes fosse suave a morte, a água entrando maciamente pelas narinas e pela boca, inundando sem sufocação os pulmões, regatinhos que vão enchendo os alvéolos, um após outro, todo o oco corpo, quarenta dias e quarenta noites de sono e de chuva, os corpos descendo para o fundo, devagar, repletos de água, finalmente mais pesados do que ela, foi assim que estas coisas se passaram, também Ofélia se deixa ir na corrente, cantando, mas essa terá de morrer antes que se acabe o quarto acto da tragédia, tem cada um o seu modo pessoal de dormir e morrer, julgamos nós, mas é o dilúvio que continua, chove sobre nós o tempo, o tempo nos afoga."

pág. 45
"Como a imagem de si mesmo reflectida num trémulo espelho de água, o rosto de Ricardo Reis, suspenso sobre a página, recompõe as linhas conhecidas, daqui a pouco poderá reconhecer-se, Sou eu, sem nenhuma ironia, sem nenhum desgosto, contente de não sentir sequer contentamento, menos ser o que é do que estar onde está, assim faz que mais não deseja ou sabe que mais não pode ter, por isso só quer o que já era seu, enfim, tudo."
(...)
Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir, e tendo escrito não soube o que mais dizer, há ocasiões assim, acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque não foi possível calar os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas."

pág. 58
"Por isso é duvidoso ter-se despedido Cristo da vida com as palavras da escritura, as de Mateus e Marcos, Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste, ou as de Lucas, Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, os as de João, Tudo está cumprido, o que Cristo disse foi, palavra de honra, qualquer pessoa popular sabe que é esta a verdade, Adeus, mundo, cada vez pior. Mas os deuses de Ricardo Reis são outros, silenciosas entidades que nos olham indiferentes, para quem o mal e o bem são menos que palavras, por não as dizerem eles nunca, e como as diria, se mesmo entre o bem e o mal não sabem distinguir, indo como nós vamos no rio das coisas, só eles distintos porque lhes chamamos deuses e às vezes acreditamos."

pág. 60
"Meditam-se estas contradições enquanto se vai subindo a Rua do Alecrim, pelas calhas dos eléctricos ainda correm regueirinhos de água, o mundo não consegue estar quieto, é o vento que sopra, são as nuvens que voam, da chuva nem se fala, tanta tem sido. Ricardo Reis pára diante da estátua de Eça de Queiroz, por cabal respeito da ortografia que o dono usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver."

pág. 62
"Quando uma ideia puxou outra, dizemos que houve associação delas, não falta mesmo quem seja de opinião que todo o processo mental humano decorre dessa sucessiva estimulação, muitas vezes inconsciente, outras nem tanto, outras compulsivas, outras agindo em fingimento de que o é para poder ser adjunção diferente, inversa quando calha, enfim, relações que são muitas, mas entre si ligadas pela espécie que juntas constituem e parte do que latamente de denominará comércio e indústria dos pensamentos, por isso o homem, entre o mais que seja, tenha sido ou venha a ser, é lugar industrial e comercial, produtor primeiro, retalhista depois, consumidor finalmente, e também baralhada e reordenada esta ordem, de ideias falo, de al não, então lhe chamaríamos, com propriedade, ideias associadas, com ou sem companhia, ou em comandita, acaso sociedade cooperativa, nunca de responsabilidade limitada, jamais anónima, porque, nome, todos o temos."

pág. 70
"Há-de o homem esforçar-se sempre, para que esse seu nome de homem mereça, mas é menos senhor da sua pessoa e destino que julga, o tempo, não o seu, o fará crescer ou apagar, por outros merecimentos algumas vezes, ou diferentemente julgados, Que serás quando fores de noite a ao fim da estrada."

pág. 79
"Ouvia os passo de Ricardo Reis no corredor, em tão completo sossego dá-se pelo mais leve ruído, não há luz em nenhum quarto, ou neles se dorme já ou estão desocupados, ao fundo brilha tenuemente a chapazinha do número duzentos e um, é então que Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado no sofá estava um homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se, Então como tem passado, um deles fez a pergunta, ou ambos, não importa averiguar, considerando-se a insignificância da frase."

pág. 82
"(...) Diga-me, como soube que eu estava hospedado neste hotel, Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma das vantagens, respondeu Fernando Pessoa, E entrar, como foi que entrou no meu quarto, Como qualquer outra pessoa entraria, Não veio pelos ares, não atravessou as paredes, Que absurda ideia, meu caro, isso só acontece nos livros de fantasmas, os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás, nem há outros, vim por aí fora desde os Prazeres, como qualquer mortal, subi a escada, abri aquela porta, sentei-me neste sofá à sua espera (...)"

pág. 91
"São assim os labirintos, têm ruas, travessas e becos sem saída, há quem diga que a mais segura maneira de sair deles é ir andando e virando sempre para o mesmo lado, mas isso, como temos obrigação de saber, é contrário à natureza humana."

pág 120
"(...) Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o confesso, são adivinhações que nos saem pela boca sem que saibamos que caminhos andámos para lá chegar, o pior é que morri antes de ter percebido se é o poeta que se finge homem ou o homem que se finge poeta (...)"

Pág. 171
"Adormeceu, acordou, sonhara com grandes planícies banhadas de sol, com rios que deslizavam em meandros entre as árvores, barcos que desciam solenes a corrente, ou alheios, e ele viajando em todos, multiplicado, dividido, acenando para si mesmo como quem se despede, ou como se com o gesto quisesse antecipar um encontro, depois os barcos entraram num lago, ou estuário, águas quietas, paradas, ficaram imóveis, dez seriam, ou vinte, qualquer número, sem vela nem remo, ao alcance da voz, mas não podiam entender-se os marinheiros, falavam ao mesmo tempo, e como eram iguais as palavras que diziam e em igual sequencia não se ouviam uns aos outros, por fim os barcos começaram a afundar-se, o coro das vozes reduzia-se, sonhando tentava Ricardo Reis fixar as palavras, as derradeiras, ainda julgou que o tinha conseguido, mas o último barco foi ao fundo, as sílabas desligadas, soltas, borbulhavam na água, exalação da palavra afogada, subiam à superfície, sonoras, porém sem significado, adeus não era, nem promessa, nem testamento, e o que fossem, sobre as águas já não havia ninguém para ouvir."

pág. 186
"Ainda acrescentou, meia hora passada, Cumpramos o que somos, nada mais nos é dado, e arredou a folha de papel, murmurando, Quantas vezes já terei eu escrito isto doutras maneiras. Estava sentado no sofá, virado para a porta, o silêncio pesava-lhe sobre os ombros como um duende malicioso."

pág. 189
"(...) Não adianta estar prevenido, por mais que você fale, por mais que todos falemos, ficará sempre uma palavrinha por dizer, Nem lhe pergunto que palavra é essa, Faz muito bem, enquanto calamos as perguntas mantemos a ilusão de que poderemos vir a saber as respostas(...)"

pág. 195
"Quem disser que a natureza é indiferente às dores e preocupações dos homens, não sabe de homens nem de natureza."

pág. 205
"Chove lá fora, no vasto mundo, com tão denso rumor é impossível que, a esta hora, não esteja a chover sobre a terra inteira, vai o globo murmurando águas pelo espaço, como pião zumbidor, E o escuro ruído da chuva é constante em meu pensamento, meu ser é a invisível curva traçada pelo som do vento, que sopra desaforado, cavalo sem freio e à solta, de invisíveis cascos que batem por essas portas e janelas, enquanto dentro deste quarto, onde apenas oscilam, de leve, os transparentes, um homem rodeado de escuros e altos móveis escreve uma carta, compondo e adequando o seu relato para que o absurdo consiga parecer lógico, a incoerência rectidão perfeita, a fraqueza força, a humilhação dignidade, o temor desassombro, que tanto vale o que fomos como o que desejaríamos ter sido, assim o tivéssemos nós ousado quando fomos chamados a contas, sabê-lo já é metade do caminho, basta que nos lembremos disto e não nos faltem as forças quando for preciso andar a outra metade."

pág. 225
"Ricardo Reis diz, Lá lhe ficou uma lembrança, o Pimenta responde, Muito obrigado ao senhor doutor, quando quiser alguma coisa é só dizer, todas estas palavras são inúteis, e isso ainda é o melhor que podemos dizer delas, quase todas, em verdade, hipócritas, razão tinha aquele francês que disse que a palavra foi dada ao homem para disfarçar o pensamento, enfim, teria razão o tal, são questões sobre as quais não devemos fazer juízos peremptórios, o mais certo é ser a palavra o melhor que se pode arranjar, a tentativa sempre frustrada para exprimir isso a que, por palavra, chamamos pensamento."

pág. 232
"Vai à procura dos pacotes dos bolos secos, das frutas cristalizadas, com eles engana a fome, para beber só tem a água da torneira, a saber a fénico, assim desmunidos se devem ter sentido Adão e Eva naquela primeira noite depois e expulsos do éden, por sinal que também caía água que Deus a dava, ficaram os dois no vão da porta, Eva perguntou a Adão, Queres uma bolacha, e como justamente tinha só uma, partiu-a em dois bocados, du-lhe a parte maior, foi daí que veio o costume. Adão mastiga devagar, olhando Eva que debica o seu pedacito, inclinando a cabeça como uma ave curiosa. Para além desta porta, fechada para sempre, lhe tinha dado ela a maçã, ofereceu-a sem intenção de malícia nem conselho de serpente, porque nua estava, e por isso se diz que Adão só quando trincou a maça é que reparou que ela estava nua, com Eva que ainda não teve tempo de se vestir, por enquanto é como os lírio do campo, que não fiam nem tecem. Na soleira da porta passaram os dois a noite bem, com uma bolacha por ceia, Deus, do outro lado, ouviu-os triste, excluído de um festim que fora dispensado de prover, e que não previr, mais tarde se inventará um outro dito, Onde se reúnem homem e mulher, Deus estará entre eles, por estas novas palavras aprenderemos que o paraíso, afinal, não é onde nos tinham dito, é aqui, ali aonde Deus terá de ir, de cada vez, se quiser reconhecer-lhe o gosto."

pág. 238
"Fernando Pessoa estendeu-lhe o roupão, alinhou a sobra do lençol, maternalmente, Agora durma, Olhe, Fernando, faça-me um favor, apague a luz, para si não deve ter importância ficar às escuras."

pág. 250
"(...)O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de xadrez, ocupava, de braços abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na direcção do campo adversário."

pág. 286
"(...) é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não será menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morreremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi(...)"

pág. 294
"(...) é que, segundo a declaração solene de um arcebispo, o de Milene, Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Está aí escrito, Com todas as letras, que Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Exactamente. Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois largou a rir, um riso seco, tossicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai esta gente (...)"

pág. 382
"(...) Meu querido Reis, se me permite uma opinião, isso é uma safadesa, Será, o Álvaro de Campos também pedia emprestado e não pagava, o Álvaro de Campos era, rigorosamente, e para não sair da palavra, um safado, Você nunca se entendeu muito bem com ele, Também nunca me entendi muito bem consigo, Nunca nos entendemos muito bem uns aos outros, Era inevitável, se existíamos vários (...)"


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Círculo de Leitores, 1984