quarta-feira, 11 de abril de 2007

em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

pág. 7 (início)
"Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheias na lezíria."

pág. 19
"Abriu uma das janelas, olhou para fora. A chuva parara. O ar fresco, húmido do vento que passara sobre o rio, entra pelo quarto dentro, corrige-lhe a atmosfera fechada, como da roupa por lavar em gaveta esquecida, um hotel não é uma casa, convém lembrar outra vez, vão-lhe ficando cheiros deste e daquela, uma suada insónia, uma noite de amor, um sobretudo molhado, o pó dos sapatos escovados no momento da partida, e depois vêm as criadas fazer as camas de lavado, varrer, fica também o seu próprio halo de mulheres, nada disto se pode evitar, são sinais da nossa humanidade."

pág. 21
"Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser."

pág. 39
"As coisas da fisiologia são complicadas, deixemo-las para quem as conheça, muito mais se ainda for preciso percorrer as veredas do sentimento que existem dentro dos sacos lacrimais, averiguar, por exemplo, que diferenças químicas haverá entre uma lágrima de tristeza e uma lágrima de alegria, decerto aquela é mais salgada, por isso nos ardem os olhos tanto."

pág. 43
"A chuva recomeçou a cair, faz sobre os telhados um rumor como de areia peneirada, entorpecendo, hipnótico, porventura no seu grande dilúvio terá Deus misericordioso desta maneira adormecido os homens para que lhes fosse suave a morte, a água entrando maciamente pelas narinas e pela boca, inundando sem sufocação os pulmões, regatinhos que vão enchendo os alvéolos, um após outro, todo o oco corpo, quarenta dias e quarenta noites de sono e de chuva, os corpos descendo para o fundo, devagar, repletos de água, finalmente mais pesados do que ela, foi assim que estas coisas se passaram, também Ofélia se deixa ir na corrente, cantando, mas essa terá de morrer antes que se acabe o quarto acto da tragédia, tem cada um o seu modo pessoal de dormir e morrer, julgamos nós, mas é o dilúvio que continua, chove sobre nós o tempo, o tempo nos afoga."

pág. 45
"Como a imagem de si mesmo reflectida num trémulo espelho de água, o rosto de Ricardo Reis, suspenso sobre a página, recompõe as linhas conhecidas, daqui a pouco poderá reconhecer-se, Sou eu, sem nenhuma ironia, sem nenhum desgosto, contente de não sentir sequer contentamento, menos ser o que é do que estar onde está, assim faz que mais não deseja ou sabe que mais não pode ter, por isso só quer o que já era seu, enfim, tudo."
(...)
Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir, e tendo escrito não soube o que mais dizer, há ocasiões assim, acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque não foi possível calar os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas."

pág. 58
"Por isso é duvidoso ter-se despedido Cristo da vida com as palavras da escritura, as de Mateus e Marcos, Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste, ou as de Lucas, Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, os as de João, Tudo está cumprido, o que Cristo disse foi, palavra de honra, qualquer pessoa popular sabe que é esta a verdade, Adeus, mundo, cada vez pior. Mas os deuses de Ricardo Reis são outros, silenciosas entidades que nos olham indiferentes, para quem o mal e o bem são menos que palavras, por não as dizerem eles nunca, e como as diria, se mesmo entre o bem e o mal não sabem distinguir, indo como nós vamos no rio das coisas, só eles distintos porque lhes chamamos deuses e às vezes acreditamos."

pág. 60
"Meditam-se estas contradições enquanto se vai subindo a Rua do Alecrim, pelas calhas dos eléctricos ainda correm regueirinhos de água, o mundo não consegue estar quieto, é o vento que sopra, são as nuvens que voam, da chuva nem se fala, tanta tem sido. Ricardo Reis pára diante da estátua de Eça de Queiroz, por cabal respeito da ortografia que o dono usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver."

pág. 62
"Quando uma ideia puxou outra, dizemos que houve associação delas, não falta mesmo quem seja de opinião que todo o processo mental humano decorre dessa sucessiva estimulação, muitas vezes inconsciente, outras nem tanto, outras compulsivas, outras agindo em fingimento de que o é para poder ser adjunção diferente, inversa quando calha, enfim, relações que são muitas, mas entre si ligadas pela espécie que juntas constituem e parte do que latamente de denominará comércio e indústria dos pensamentos, por isso o homem, entre o mais que seja, tenha sido ou venha a ser, é lugar industrial e comercial, produtor primeiro, retalhista depois, consumidor finalmente, e também baralhada e reordenada esta ordem, de ideias falo, de al não, então lhe chamaríamos, com propriedade, ideias associadas, com ou sem companhia, ou em comandita, acaso sociedade cooperativa, nunca de responsabilidade limitada, jamais anónima, porque, nome, todos o temos."

pág. 70
"Há-de o homem esforçar-se sempre, para que esse seu nome de homem mereça, mas é menos senhor da sua pessoa e destino que julga, o tempo, não o seu, o fará crescer ou apagar, por outros merecimentos algumas vezes, ou diferentemente julgados, Que serás quando fores de noite a ao fim da estrada."

pág. 79
"Ouvia os passo de Ricardo Reis no corredor, em tão completo sossego dá-se pelo mais leve ruído, não há luz em nenhum quarto, ou neles se dorme já ou estão desocupados, ao fundo brilha tenuemente a chapazinha do número duzentos e um, é então que Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado no sofá estava um homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se, Então como tem passado, um deles fez a pergunta, ou ambos, não importa averiguar, considerando-se a insignificância da frase."

pág. 82
"(...) Diga-me, como soube que eu estava hospedado neste hotel, Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma das vantagens, respondeu Fernando Pessoa, E entrar, como foi que entrou no meu quarto, Como qualquer outra pessoa entraria, Não veio pelos ares, não atravessou as paredes, Que absurda ideia, meu caro, isso só acontece nos livros de fantasmas, os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás, nem há outros, vim por aí fora desde os Prazeres, como qualquer mortal, subi a escada, abri aquela porta, sentei-me neste sofá à sua espera (...)"

pág. 91
"São assim os labirintos, têm ruas, travessas e becos sem saída, há quem diga que a mais segura maneira de sair deles é ir andando e virando sempre para o mesmo lado, mas isso, como temos obrigação de saber, é contrário à natureza humana."

pág 120
"(...) Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o confesso, são adivinhações que nos saem pela boca sem que saibamos que caminhos andámos para lá chegar, o pior é que morri antes de ter percebido se é o poeta que se finge homem ou o homem que se finge poeta (...)"

Pág. 171
"Adormeceu, acordou, sonhara com grandes planícies banhadas de sol, com rios que deslizavam em meandros entre as árvores, barcos que desciam solenes a corrente, ou alheios, e ele viajando em todos, multiplicado, dividido, acenando para si mesmo como quem se despede, ou como se com o gesto quisesse antecipar um encontro, depois os barcos entraram num lago, ou estuário, águas quietas, paradas, ficaram imóveis, dez seriam, ou vinte, qualquer número, sem vela nem remo, ao alcance da voz, mas não podiam entender-se os marinheiros, falavam ao mesmo tempo, e como eram iguais as palavras que diziam e em igual sequencia não se ouviam uns aos outros, por fim os barcos começaram a afundar-se, o coro das vozes reduzia-se, sonhando tentava Ricardo Reis fixar as palavras, as derradeiras, ainda julgou que o tinha conseguido, mas o último barco foi ao fundo, as sílabas desligadas, soltas, borbulhavam na água, exalação da palavra afogada, subiam à superfície, sonoras, porém sem significado, adeus não era, nem promessa, nem testamento, e o que fossem, sobre as águas já não havia ninguém para ouvir."

pág. 186
"Ainda acrescentou, meia hora passada, Cumpramos o que somos, nada mais nos é dado, e arredou a folha de papel, murmurando, Quantas vezes já terei eu escrito isto doutras maneiras. Estava sentado no sofá, virado para a porta, o silêncio pesava-lhe sobre os ombros como um duende malicioso."

pág. 189
"(...) Não adianta estar prevenido, por mais que você fale, por mais que todos falemos, ficará sempre uma palavrinha por dizer, Nem lhe pergunto que palavra é essa, Faz muito bem, enquanto calamos as perguntas mantemos a ilusão de que poderemos vir a saber as respostas(...)"

pág. 195
"Quem disser que a natureza é indiferente às dores e preocupações dos homens, não sabe de homens nem de natureza."

pág. 205
"Chove lá fora, no vasto mundo, com tão denso rumor é impossível que, a esta hora, não esteja a chover sobre a terra inteira, vai o globo murmurando águas pelo espaço, como pião zumbidor, E o escuro ruído da chuva é constante em meu pensamento, meu ser é a invisível curva traçada pelo som do vento, que sopra desaforado, cavalo sem freio e à solta, de invisíveis cascos que batem por essas portas e janelas, enquanto dentro deste quarto, onde apenas oscilam, de leve, os transparentes, um homem rodeado de escuros e altos móveis escreve uma carta, compondo e adequando o seu relato para que o absurdo consiga parecer lógico, a incoerência rectidão perfeita, a fraqueza força, a humilhação dignidade, o temor desassombro, que tanto vale o que fomos como o que desejaríamos ter sido, assim o tivéssemos nós ousado quando fomos chamados a contas, sabê-lo já é metade do caminho, basta que nos lembremos disto e não nos faltem as forças quando for preciso andar a outra metade."

pág. 225
"Ricardo Reis diz, Lá lhe ficou uma lembrança, o Pimenta responde, Muito obrigado ao senhor doutor, quando quiser alguma coisa é só dizer, todas estas palavras são inúteis, e isso ainda é o melhor que podemos dizer delas, quase todas, em verdade, hipócritas, razão tinha aquele francês que disse que a palavra foi dada ao homem para disfarçar o pensamento, enfim, teria razão o tal, são questões sobre as quais não devemos fazer juízos peremptórios, o mais certo é ser a palavra o melhor que se pode arranjar, a tentativa sempre frustrada para exprimir isso a que, por palavra, chamamos pensamento."

pág. 232
"Vai à procura dos pacotes dos bolos secos, das frutas cristalizadas, com eles engana a fome, para beber só tem a água da torneira, a saber a fénico, assim desmunidos se devem ter sentido Adão e Eva naquela primeira noite depois e expulsos do éden, por sinal que também caía água que Deus a dava, ficaram os dois no vão da porta, Eva perguntou a Adão, Queres uma bolacha, e como justamente tinha só uma, partiu-a em dois bocados, du-lhe a parte maior, foi daí que veio o costume. Adão mastiga devagar, olhando Eva que debica o seu pedacito, inclinando a cabeça como uma ave curiosa. Para além desta porta, fechada para sempre, lhe tinha dado ela a maçã, ofereceu-a sem intenção de malícia nem conselho de serpente, porque nua estava, e por isso se diz que Adão só quando trincou a maça é que reparou que ela estava nua, com Eva que ainda não teve tempo de se vestir, por enquanto é como os lírio do campo, que não fiam nem tecem. Na soleira da porta passaram os dois a noite bem, com uma bolacha por ceia, Deus, do outro lado, ouviu-os triste, excluído de um festim que fora dispensado de prover, e que não previr, mais tarde se inventará um outro dito, Onde se reúnem homem e mulher, Deus estará entre eles, por estas novas palavras aprenderemos que o paraíso, afinal, não é onde nos tinham dito, é aqui, ali aonde Deus terá de ir, de cada vez, se quiser reconhecer-lhe o gosto."

pág. 238
"Fernando Pessoa estendeu-lhe o roupão, alinhou a sobra do lençol, maternalmente, Agora durma, Olhe, Fernando, faça-me um favor, apague a luz, para si não deve ter importância ficar às escuras."

pág. 250
"(...)O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de xadrez, ocupava, de braços abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na direcção do campo adversário."

pág. 286
"(...) é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não será menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morreremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi(...)"

pág. 294
"(...) é que, segundo a declaração solene de um arcebispo, o de Milene, Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Está aí escrito, Com todas as letras, que Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Exactamente. Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois largou a rir, um riso seco, tossicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai esta gente (...)"

pág. 382
"(...) Meu querido Reis, se me permite uma opinião, isso é uma safadesa, Será, o Álvaro de Campos também pedia emprestado e não pagava, o Álvaro de Campos era, rigorosamente, e para não sair da palavra, um safado, Você nunca se entendeu muito bem com ele, Também nunca me entendi muito bem consigo, Nunca nos entendemos muito bem uns aos outros, Era inevitável, se existíamos vários (...)"


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Círculo de Leitores, 1984

quarta-feira, 21 de março de 2007

Em Memória de Elefante, de António Lobo Antunes

pág. 10
"- Senhor Morgado, pela saúde dos seus e meus tomates, não me lixe mais com o caralho das quotas durante um ano e diga à Sociedade de Neurologia e Psiquiatria e amanuenses do cerebelo afins que metam o meu dinheiro enroladinho e vaselinado no sítio que eles sabem, obrigadíssimos e tenho dito amém."

pág. 20
"Desde que se separara da mulher cinco meses antes que o médico morava sozinho num apartamento decorado de um colchão e de um despertador mudo, imobilizado de nascença nas sete da tarde, malformação congénita do seu agrado por detestar os relógios em cujo interior de metal palpita a mola taquicárdia de um coraçãozinho ansioso. A varanda pulava directamente para o Atlântico por sobre as roletas do casino, em que se multiplicavam americanas idosas cansadas de fotografarem túmulos barrocos de areia, exibindo as sardas esqueléticas dos decotes numa arrepiante audácia de quacres renegadas. Estendido nos lençóis sem descer a persiana, o psiquiatra sentia os pés a tocarem o escuro do mar, diferente do escuro da terra pela inquietação ritmada que o agita. As fábricas do Barreiro introduziam no lilás da aurora o fumo musculoso das chaminés distantes. Gaivotas sem bússola esbarravam, estupefactas, com os pardais dos plátanos e as andorinhas de loiça das fachadas. Uma garrafa de aguardente iluminava a cozinha vazia de lâmpada votiva de uma felicidade de cirrose. De roupa espalhada no soalho o médico aprendia que a solidão possuía o gosto azedo do álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava-loiça. E acabava por concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar-se ao camelo recheando a sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de dunas, que teria preferido nunca conhecer."

pág. 22
"Havia alturas em que lhe parecia injusto tocá-la, como se o contacto dos seus dedos despertasse nela um sofrimento sem razão."

pág 23.
"Quando é que eu me fodi?"

pág. 31
"Voltar, pensou o psiquiatra, repetindo a palavra num vagar de camponês que enrolasse mortalha pensativa na tarde de um campo de trigo, voltar, abrir a porta com a simplicidade literária do Suave Milagre e informar sorrindo: estou aqui?"

pág. 37
"Meu amor, falou dentro de si mesmo apalpando a gravata, sei que isto não alivia nem ajuda mas de nós os dois fui eu o que não soube lutar: e vieram-lhe à memória longas noites na praia desfeita dos lençóis, a sua língua desenhando devagar contornos nos seios iluminados de uma rede de veias pela primeira luz da aurora, o poeta Robert Desnos a agonizar de tifo num campo de prisioneiros alemão murmurando - É a minha manhã mais matinal, a voz de John Cage a repetir Every something is an echo of nothing, e a forma como o corpo dela se abria em concha para o receber, vibrando tal as folhas dos cumes dos pinheiros agitados por um vento invisível e tranquilo."

pág. 42
"Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é teu corpo que não compreendo porque nos perdemos, a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio."


pág. 50
"- Temos aí uma chatice das antigas - disse ele a riscar a lixa com raiva desusada. - A Sagrada Família que quer comer à cãzana e à má fila o Menino Jesus. Só a cabra da mãe vale um poema de marmeleiro bem passado. Agarre-se ao corrimão que estão os três no gabinete do fundo à sua espera."

pág. 51
"Algarvio de um corno, pensou o médico, pareces um poeta neo-realista a julgar que altera o mundo com os versos que oculta na gaveta."

pág. 63
"O psiquiatra desejou com desespero um esperanto que abolisse as distâncias exteriores e interiores que separam pessoas, aparelho verbal capaz de abrir janelas de manhã nas fundas noites de cada criatura como certos poemas de Ezra Pound nos mostram de súbito os sótãos de nós mesmos num maravilhamento de revelação: a certeza de ter topado um companheiro de viagem em banco à primeira vista vazio e a alegria da partilha inesperada."

pág. 69
"Minha velha, pensou ele, minha velha-velha, nunca soubemos entender-nos bem um com o outro: logo à nascença te quase matei de eclampsia, tirado a ferros de ti, e segundo a tua perspectiva tenho caminhado pelos anos de trambolhão em trambolhão a caminho de uma qualquer mas certa desgraça derradeira. O meu filho mais velho é maluco, anunciavas às visitas para desculpar as (para ti) bizarrias do meu comportamento, as minhas inexplicáveis melancolias, os versos que às ocultas segregava, casulos de sonetos para um angústia informe. A avó onde eu ia aos domingos com a ideia posta nas nádegas da criada, e que morava à sobra da glória e das condecorações de dois generais defuntos, avisava-me doridamente à hora do bife: - Tu matas a tua mãe."

pág. 70
"O gosto do silêncio e o fitarmo-nos como estranhos separados por distância impossível de abolir, que pensarás de facto de mim, da minha vontade informulada de te reentrar no útero para um demorado sono mineral sem sonhos, pausa de pedra nesta corrida que me apavora e que do exterior se me diria imposta, enfrenesiado trote da angústia na direcção do repouso que não há. Mato-me, mãe, sem que ninguém ou quase ninguém o note, baloiço pendurado na corda de um sorriso, choro por dentro humidades de gruta, suor de granito, secreto nevoeiro em que me escondo."

pág. 77
"- Eh pá - disse ele para a imagem reflectida, anjo tutelar da sua angústia imóvel sobre um fundo de azulejos -, eh pá, cona da prima, cu da velha ranhosa, tomates do padre Inácio, é mesmo muito fodido ser homem. Não é?"

pág. 80
"Dividido entre a timidez e o desejo o médico assistira em peúgas, abraçado à roupa que não sabia onde pousar, à metamorfose daquela Mata-Hari de pacotilha nem ser semelhante ao monstro de teta hercúlea a rasgar listas telefónicas no circo que passeava na praia, no Verão, os tigres sarnosos da sua miséria de lantejoulas sem brilho. A mulher introduziu-se nos lençóis como uma fatia de fiambre entre duas metades de um pão, e ele, atónito, aproximou-se até tocar a medo na colcha à maneira de quem palpa com os joanetes, em atitude de ballet friorento, a temperatura da piscina. A túlipa do tecto revelava o planisfério de continentes desconhecidos que a humidade desenhava na caliça. O grito impaciente - É para hoje, ó necas?, atirou-o sobre a cama com a veemência sem réplica de um pontapé oportuno, e o psiquiatra perdeu a virgindade ao penetrar, todo ele, num grande túnel peludo, afogando o nariz na almofada semeada de ganchos de cabelo como uma árvore de Natal de flocos de algodão, a que aderiam placas de caspa idênticas a grandes lâminas de gordura."

pág. 86
"Talvez que eu esteja morto, pensou, certamente que morri de modo que nada de importante me pode já acontecer, só a gangrena a roer o corpo por dentro, a cabeça oca de ideias, e lá em cima, a superfície, a mão mole do vento a remexer, à procura, as copas dos ciprestes, num frémito de folhas de jornal velho que se amarrota."

pág. 101
"A Avenida Almirante Reis, eternamente cinzenta, pluviosa e triste ao sol de Julho, balizada alternadamente por ardinas e inválidos, trotava na direcção do Tejo entre duas gengivas de prédios cariados, com um cavalheiro apertado em sapatos novos para a paragem do eléctrico."
(…)
“Salões de cabeleireiro habitado de baratas propunham às donas de casa em mal imaginação soluções capilares imprevistas, a que retrosarias poeirentas daria o toque final de soutiens de renda, mosquiteiros torácicos capazes de rejuvenescerem de erecções formidáveis vinte e cinco anos de resignação conjugal.”

pág. 104
" Os comboios do Cais do Sodré arrastaram para o Estoril os primeiros jogadores e os últimos turistas, noruegueses de indicador perdido no mapa da cidade, e as ruas e o rio principiavam a confluir na mesma paz de Verão, horizontal, que as fábricas do Barreiro coloriam de fumo vermelho operário, antecipação do poente."

pág. 111
"Não havia comida para bebés em Malanje e a nossa filha tornou a Portugal magra e frágil, com a cor amarelada dos brancos de Angola, ferrugenta de febre, um ano a dormir em cama de bordão de palmeira junto das nossas camas de quartel, estava a fazer uma autópsia ao ar livre por via do cheiro quando me chamaram porque desmaiaras, encontrei-te exausta numa cadeira feita de tábuas de barrica, fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo, Até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, certo da certeza de que nada nos podia separar, como uma onda para um praia na tua direcção vai o meu corpo, exclamou o Neruda, e era assim connosco, e é assim comigo só que não sou capaz de to dizer ou digo-te se não estás, digo-te sozinho tonto do amor que te tenho, de mais nos ferimos, nos magoámos, nos tentámos matar dentro de cada um, e apesar disso, subterrânea e imensa, a onda continua e como para a praia na tua direcção o trigo do meu corpo de inclina, espigas de dedos te buscam, tentam tocar-te, se prendem na tua pele com força de unhas, as tuas pernas estreitas apertam-me a cintura, subo a escada, bato o trinco, entro, o colchão conhece ainda o jeito do meu corpo, penduro a roupa na cadeira, como uma onda para a praia como uma onda para a praia na tua direcção vai o meu corpo."

pág. 120
"Por essa época penava na composição de um longo poema péssimo inspirado no Pale Fire de Nabokov, e acreditava existir em si a ampla força do Claudel das Grandes Odes temperada pela contenção de T.S. Eliot: a ausência de talento é uma benção, verificou ele; só que custa a gente habituar-se a isso."

Pág. 133
“Amigo Cesário, disse o psiquiatra com ternura, vi a semana passada qualquer coisa que te traria à boca alexandrinos de alegria: procurava eu sítio onde jantar e passando rente ao teu busto iluminado na berma de relva estefânica em que o puseram, dei com uma velha de preto sentada no degrau da estátua com uma alcofa aos pés, e compreendi então a diferença que vai de ti ao Eça e que é a mesma que separa um abraço a uma virgem de pedra da vizinhança de uma criatura viva, arrancada à solidez da carne dos teus versos.”

pág. 163
"Se vou agora para casa fodo-me, disse ele, não me acho em condições de enfrentar o espelho do quarto de banho e aquele silêncio todo à minha espera, a cama fechada sobre si própria à maneira de um mexilhão pegajoso."

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Círculo de Leitores, 1984 (publicado originalmente em 1979) .

sexta-feira, 16 de março de 2007

Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago

pág. 14
"De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas por ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a miranda sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à predição pelo infame corpo."

pág. 27
"Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas umas e outras para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado."

pág. 31
"Descalça vai Maria à fonte, descalça vai ao campo com os seus vestidos pobres que no trabalho mais se sujam e gastam, e que é preciso estar sempre a lavar e remendar, para o marido vão os panos novos e os cuidados maiores, mulheres destas com qualquer coisa se contentam. Maria vai à sinagoga, entra pela porta lateral, que a lei impõe às mulheres, e se, é um supor, lá se encontram ela e trinta companheiras, ou mesmo todas as fêmeas de Nazaré, ou toda a população feminina da Galileia, ainda assim terão de esperar que chegeum ao menos dez homens para que o serviço do culto, em que só como passivas assistentes participarão, possa ser celebrado. Ao contrário de José, seu marido, Maria não é piedosa nem justa, porém não é sua a culpa dessas mazelas morais, a culpa é da língua que fala, senão dos homens que a inventaram, pois nela as palavras justo e piedoso, simplesmente, não têm feminino."

pág. 48
"Para disfarçar a contrariedade deu ao resto uma expressão de composta sisudez e disse, É certo que Deus nem sempre quer poder o que pode César, mas César nada pode onde só Deus pode."

pág. 69
"Nesta noite não houve conversas, nem recitações, nem histórias contadas à volta da fogueira, como se a proximidade de Jerusalém obrigasse ao silêncio, cada um olhando para dentro de si e perguntando, Quem és tu, que comigo te pareces, mas a quem não sei reconhecer, e não é que o dissessem de facto, as pessoas não se põem assim a falar sozinhas, sem mais nem menos, ou sequer o pensassem conscientemente, porém o certo é que um silêncio como este, quando fixamente olhamos as chamas de uma fogueira e calamos, se quisermos traduzi-lo em palavras, não há outras, são aquelas, e dizem tudo."

pág. 82
"Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, como foi determinado pelo Senhor Deus quando Eva errou por desobediência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia continua."

pág. 90
"Mil vezes a experiência tem demonstrado, mesmo em pessoas não particularmente dadas à reflexão, que a melhor maneira de chegar a uma boa ideia é ir deixando discorrer o pensamento ao sabor dos seus próprios acasos e inclinações, mas vigiando-o com uma atenção que convém parecer distraída, como se se estivesse a pensar noutra coisa, e de repente salta-se em cima do desprevenido achado como um tigre sobre presa."

pág. 149
"Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolar pelas faces."

pág. 213
"A coluna de fumo dos sacrifícios subia a direito para o céu e ia dissipar-se e desaparecer nas alturas, como se a aspirassem os gigantescos foles do pulmão de Deus."

pág. 222
"Dizem os entendidos nas regras de bem contar contos que os encontros decisivos, tal como sucede na vida, deverão vir entremeados e entrecruzar-se com mil outros de pouca ou nula importância, a fim de que o herói da história não de veja transformadao em um ser de excepção a quem tudo poderá acontecer na vida, salvo vulgaridades."

pág. 233
"O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco, Deus é uno, completo e indivisível, clamou Jesus, e quase chorava de piedosa indignação, ao que o outro respondeu, Não sei como pode Deus viver, a frase não passou daqui porque Jesus, com a autoridade de um mestre de sinagoga, cortou, Deus não vive, é, Nessas diferenças não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada, Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios, Não valho tanto, Deus não dorme, um dia te punirá, Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita os pesadelos do remorso, Por que me falas tu de pesadelos e remorso, Porque estamos a falar do teu Deus, E o teu, quem é, Não tenho deus, sou como uma das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para o altar do Senhor, E eu digo-te que como lobos uivariam essas mães se o soubessem. Jesus ficou pálido, sem reposta."

pág. 238
"Acomodou o alforge ao ombro, ajustou as correias das sandálias que tinham sido do pai e seguiu de longe o rebanho. Juntou-se a ele quando a noite caiu, apareceu da escuridão para a luz da fogueira, e disse, Aqui estou."

pág. 241
"Jesus virou a cara para o lado e deu um passo para retirar-se, mas Pastor que detivera o movimento da faca, ainda disse, Os escravos vivem para servir-nos, talvez devessemos abri-los para sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abrissemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro. Falámos, antes, de recidivas dos choques de ideias e convicções entre Jesus e Pastor, e este é um exemplo. Mas Jesus, com o tempo, aprendera que a melhor resposta seria calar, não se dar por achado perante as provocações, mesmo brutais, como esta, e ainda assim vai com sorte, podia ter sido bem pior, imagine-se o escândalo se Pastor se lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo lá estava dentro."

pág. 284
"E Jesus, sobre ela, respondeu, O que me ensinas, não é prisão, é liberdade."

pág. 297
"Antes de adormecer, Jesus pensou em Maria de Magdala e em todas as coisa que tinham feito juntos, e, se é certo que tais pensamentos o alteraram a ponto de por duas vezes se ter levantado da palha para dar uma volta no pátio a fim de refrescar o sangue, também é certo que, entrando finalmente no sono, o dormir acabou por lhe chegar liso e manso, de criança inocente, como um corpo que fosse rio abaixo, abandonado à corrente vagarosa, vendo passar por cima da cabeças os ramos e as nuvens, e um pássaro sem voz que aparecia e desaparecia."

pág. 332
"Diz o povo, dizemo-lo nós, provavelmente dizem-no os povos todos, sendo como é a experiências dos males tão geral e universal, que debaixo dos pés se levantam os trabalhos. Um tal dito, se não nos enganamos, só podia tê-lo inventado um povo da terra, à custa de tropeções e topadas, de percalços, esperas e puas assasinas. Depois, em virtude da generalidade e universalidade já assinaladas, ter-se-á espalhado por todo o orbe, fazendo lei, mas, ainda assim, supomos que com alguma relutância por parte da gente marítima e piscatória que sabe existirem fundíssimas funduras entre os seus pés e o chão, e não poucas vezes abissais abismos. Para o povo do mar os trabalhos não se lavantam do chão, para o povo do mar os trabalhos caem do céu, chamam-se vento e ventania, e é por causa deles que se erguem as ondas e as vagas, se geram as tempestades, se rompe a vela, se quebra o mastro, se afunda o frágil lenho, e estes homens da pesca e da navegação onde morrem, verdadeiramente, é entre o céu e a terra, o céu que as mãos não alcançam, o chão a que os pés não chegam."

pág. 364
"O nevoeiro abre-se para Jesus passar, mas o mais longe a que os olhos chegam é a ponta dos remos, e a popa, com a sua travessa simples a servir de banco. O resto é um muro, primeiro baço e cinzento, depois, à medida que a barca se aproxima do destino, uma claridade difusa começa tornar branco e brilhante o nevoeiro, que vibra com se procurasse, sem o conseugir, no silêncio, um som. Numa roda maior de luz, a barca para, é o centro do mar. Sentado no banco da popa, está Deus."

pág. 391
"Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue."

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Editorial Caminho
1991

quinta-feira, 8 de março de 2007

Esclarecimento do Sobre...

Apesar do aviso no topo do blogue, o que fala em spoilers de uma maneira mais ou menos a puxar para o gratuito, não é minha intenção revelar aspectos importantes, decisivos, ou, em último caso, totalmente reveladores da história ou do tema abordado nos livros aqui representados.


A intenção maior deste blogue é, para aqueles que ainda não leram tais obras, aguçar determinados apetites, levando-os a passear até à beira do abismo do impulso da leitura; e, para aqueles que já as leram, proporcionar alguns momentos de felizes (espero) recordações literárias.