sexta-feira, 16 de março de 2007

Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago

pág. 14
"De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas por ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a miranda sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à predição pelo infame corpo."

pág. 27
"Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas umas e outras para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado."

pág. 31
"Descalça vai Maria à fonte, descalça vai ao campo com os seus vestidos pobres que no trabalho mais se sujam e gastam, e que é preciso estar sempre a lavar e remendar, para o marido vão os panos novos e os cuidados maiores, mulheres destas com qualquer coisa se contentam. Maria vai à sinagoga, entra pela porta lateral, que a lei impõe às mulheres, e se, é um supor, lá se encontram ela e trinta companheiras, ou mesmo todas as fêmeas de Nazaré, ou toda a população feminina da Galileia, ainda assim terão de esperar que chegeum ao menos dez homens para que o serviço do culto, em que só como passivas assistentes participarão, possa ser celebrado. Ao contrário de José, seu marido, Maria não é piedosa nem justa, porém não é sua a culpa dessas mazelas morais, a culpa é da língua que fala, senão dos homens que a inventaram, pois nela as palavras justo e piedoso, simplesmente, não têm feminino."

pág. 48
"Para disfarçar a contrariedade deu ao resto uma expressão de composta sisudez e disse, É certo que Deus nem sempre quer poder o que pode César, mas César nada pode onde só Deus pode."

pág. 69
"Nesta noite não houve conversas, nem recitações, nem histórias contadas à volta da fogueira, como se a proximidade de Jerusalém obrigasse ao silêncio, cada um olhando para dentro de si e perguntando, Quem és tu, que comigo te pareces, mas a quem não sei reconhecer, e não é que o dissessem de facto, as pessoas não se põem assim a falar sozinhas, sem mais nem menos, ou sequer o pensassem conscientemente, porém o certo é que um silêncio como este, quando fixamente olhamos as chamas de uma fogueira e calamos, se quisermos traduzi-lo em palavras, não há outras, são aquelas, e dizem tudo."

pág. 82
"Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, como foi determinado pelo Senhor Deus quando Eva errou por desobediência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia continua."

pág. 90
"Mil vezes a experiência tem demonstrado, mesmo em pessoas não particularmente dadas à reflexão, que a melhor maneira de chegar a uma boa ideia é ir deixando discorrer o pensamento ao sabor dos seus próprios acasos e inclinações, mas vigiando-o com uma atenção que convém parecer distraída, como se se estivesse a pensar noutra coisa, e de repente salta-se em cima do desprevenido achado como um tigre sobre presa."

pág. 149
"Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolar pelas faces."

pág. 213
"A coluna de fumo dos sacrifícios subia a direito para o céu e ia dissipar-se e desaparecer nas alturas, como se a aspirassem os gigantescos foles do pulmão de Deus."

pág. 222
"Dizem os entendidos nas regras de bem contar contos que os encontros decisivos, tal como sucede na vida, deverão vir entremeados e entrecruzar-se com mil outros de pouca ou nula importância, a fim de que o herói da história não de veja transformadao em um ser de excepção a quem tudo poderá acontecer na vida, salvo vulgaridades."

pág. 233
"O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco, Deus é uno, completo e indivisível, clamou Jesus, e quase chorava de piedosa indignação, ao que o outro respondeu, Não sei como pode Deus viver, a frase não passou daqui porque Jesus, com a autoridade de um mestre de sinagoga, cortou, Deus não vive, é, Nessas diferenças não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada, Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios, Não valho tanto, Deus não dorme, um dia te punirá, Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita os pesadelos do remorso, Por que me falas tu de pesadelos e remorso, Porque estamos a falar do teu Deus, E o teu, quem é, Não tenho deus, sou como uma das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para o altar do Senhor, E eu digo-te que como lobos uivariam essas mães se o soubessem. Jesus ficou pálido, sem reposta."

pág. 238
"Acomodou o alforge ao ombro, ajustou as correias das sandálias que tinham sido do pai e seguiu de longe o rebanho. Juntou-se a ele quando a noite caiu, apareceu da escuridão para a luz da fogueira, e disse, Aqui estou."

pág. 241
"Jesus virou a cara para o lado e deu um passo para retirar-se, mas Pastor que detivera o movimento da faca, ainda disse, Os escravos vivem para servir-nos, talvez devessemos abri-los para sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abrissemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro. Falámos, antes, de recidivas dos choques de ideias e convicções entre Jesus e Pastor, e este é um exemplo. Mas Jesus, com o tempo, aprendera que a melhor resposta seria calar, não se dar por achado perante as provocações, mesmo brutais, como esta, e ainda assim vai com sorte, podia ter sido bem pior, imagine-se o escândalo se Pastor se lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo lá estava dentro."

pág. 284
"E Jesus, sobre ela, respondeu, O que me ensinas, não é prisão, é liberdade."

pág. 297
"Antes de adormecer, Jesus pensou em Maria de Magdala e em todas as coisa que tinham feito juntos, e, se é certo que tais pensamentos o alteraram a ponto de por duas vezes se ter levantado da palha para dar uma volta no pátio a fim de refrescar o sangue, também é certo que, entrando finalmente no sono, o dormir acabou por lhe chegar liso e manso, de criança inocente, como um corpo que fosse rio abaixo, abandonado à corrente vagarosa, vendo passar por cima da cabeças os ramos e as nuvens, e um pássaro sem voz que aparecia e desaparecia."

pág. 332
"Diz o povo, dizemo-lo nós, provavelmente dizem-no os povos todos, sendo como é a experiências dos males tão geral e universal, que debaixo dos pés se levantam os trabalhos. Um tal dito, se não nos enganamos, só podia tê-lo inventado um povo da terra, à custa de tropeções e topadas, de percalços, esperas e puas assasinas. Depois, em virtude da generalidade e universalidade já assinaladas, ter-se-á espalhado por todo o orbe, fazendo lei, mas, ainda assim, supomos que com alguma relutância por parte da gente marítima e piscatória que sabe existirem fundíssimas funduras entre os seus pés e o chão, e não poucas vezes abissais abismos. Para o povo do mar os trabalhos não se lavantam do chão, para o povo do mar os trabalhos caem do céu, chamam-se vento e ventania, e é por causa deles que se erguem as ondas e as vagas, se geram as tempestades, se rompe a vela, se quebra o mastro, se afunda o frágil lenho, e estes homens da pesca e da navegação onde morrem, verdadeiramente, é entre o céu e a terra, o céu que as mãos não alcançam, o chão a que os pés não chegam."

pág. 364
"O nevoeiro abre-se para Jesus passar, mas o mais longe a que os olhos chegam é a ponta dos remos, e a popa, com a sua travessa simples a servir de banco. O resto é um muro, primeiro baço e cinzento, depois, à medida que a barca se aproxima do destino, uma claridade difusa começa tornar branco e brilhante o nevoeiro, que vibra com se procurasse, sem o conseugir, no silêncio, um som. Numa roda maior de luz, a barca para, é o centro do mar. Sentado no banco da popa, está Deus."

pág. 391
"Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue."

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Editorial Caminho
1991

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