quarta-feira, 21 de março de 2007

Em Memória de Elefante, de António Lobo Antunes

pág. 10
"- Senhor Morgado, pela saúde dos seus e meus tomates, não me lixe mais com o caralho das quotas durante um ano e diga à Sociedade de Neurologia e Psiquiatria e amanuenses do cerebelo afins que metam o meu dinheiro enroladinho e vaselinado no sítio que eles sabem, obrigadíssimos e tenho dito amém."

pág. 20
"Desde que se separara da mulher cinco meses antes que o médico morava sozinho num apartamento decorado de um colchão e de um despertador mudo, imobilizado de nascença nas sete da tarde, malformação congénita do seu agrado por detestar os relógios em cujo interior de metal palpita a mola taquicárdia de um coraçãozinho ansioso. A varanda pulava directamente para o Atlântico por sobre as roletas do casino, em que se multiplicavam americanas idosas cansadas de fotografarem túmulos barrocos de areia, exibindo as sardas esqueléticas dos decotes numa arrepiante audácia de quacres renegadas. Estendido nos lençóis sem descer a persiana, o psiquiatra sentia os pés a tocarem o escuro do mar, diferente do escuro da terra pela inquietação ritmada que o agita. As fábricas do Barreiro introduziam no lilás da aurora o fumo musculoso das chaminés distantes. Gaivotas sem bússola esbarravam, estupefactas, com os pardais dos plátanos e as andorinhas de loiça das fachadas. Uma garrafa de aguardente iluminava a cozinha vazia de lâmpada votiva de uma felicidade de cirrose. De roupa espalhada no soalho o médico aprendia que a solidão possuía o gosto azedo do álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava-loiça. E acabava por concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar-se ao camelo recheando a sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de dunas, que teria preferido nunca conhecer."

pág. 22
"Havia alturas em que lhe parecia injusto tocá-la, como se o contacto dos seus dedos despertasse nela um sofrimento sem razão."

pág 23.
"Quando é que eu me fodi?"

pág. 31
"Voltar, pensou o psiquiatra, repetindo a palavra num vagar de camponês que enrolasse mortalha pensativa na tarde de um campo de trigo, voltar, abrir a porta com a simplicidade literária do Suave Milagre e informar sorrindo: estou aqui?"

pág. 37
"Meu amor, falou dentro de si mesmo apalpando a gravata, sei que isto não alivia nem ajuda mas de nós os dois fui eu o que não soube lutar: e vieram-lhe à memória longas noites na praia desfeita dos lençóis, a sua língua desenhando devagar contornos nos seios iluminados de uma rede de veias pela primeira luz da aurora, o poeta Robert Desnos a agonizar de tifo num campo de prisioneiros alemão murmurando - É a minha manhã mais matinal, a voz de John Cage a repetir Every something is an echo of nothing, e a forma como o corpo dela se abria em concha para o receber, vibrando tal as folhas dos cumes dos pinheiros agitados por um vento invisível e tranquilo."

pág. 42
"Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é teu corpo que não compreendo porque nos perdemos, a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio."


pág. 50
"- Temos aí uma chatice das antigas - disse ele a riscar a lixa com raiva desusada. - A Sagrada Família que quer comer à cãzana e à má fila o Menino Jesus. Só a cabra da mãe vale um poema de marmeleiro bem passado. Agarre-se ao corrimão que estão os três no gabinete do fundo à sua espera."

pág. 51
"Algarvio de um corno, pensou o médico, pareces um poeta neo-realista a julgar que altera o mundo com os versos que oculta na gaveta."

pág. 63
"O psiquiatra desejou com desespero um esperanto que abolisse as distâncias exteriores e interiores que separam pessoas, aparelho verbal capaz de abrir janelas de manhã nas fundas noites de cada criatura como certos poemas de Ezra Pound nos mostram de súbito os sótãos de nós mesmos num maravilhamento de revelação: a certeza de ter topado um companheiro de viagem em banco à primeira vista vazio e a alegria da partilha inesperada."

pág. 69
"Minha velha, pensou ele, minha velha-velha, nunca soubemos entender-nos bem um com o outro: logo à nascença te quase matei de eclampsia, tirado a ferros de ti, e segundo a tua perspectiva tenho caminhado pelos anos de trambolhão em trambolhão a caminho de uma qualquer mas certa desgraça derradeira. O meu filho mais velho é maluco, anunciavas às visitas para desculpar as (para ti) bizarrias do meu comportamento, as minhas inexplicáveis melancolias, os versos que às ocultas segregava, casulos de sonetos para um angústia informe. A avó onde eu ia aos domingos com a ideia posta nas nádegas da criada, e que morava à sobra da glória e das condecorações de dois generais defuntos, avisava-me doridamente à hora do bife: - Tu matas a tua mãe."

pág. 70
"O gosto do silêncio e o fitarmo-nos como estranhos separados por distância impossível de abolir, que pensarás de facto de mim, da minha vontade informulada de te reentrar no útero para um demorado sono mineral sem sonhos, pausa de pedra nesta corrida que me apavora e que do exterior se me diria imposta, enfrenesiado trote da angústia na direcção do repouso que não há. Mato-me, mãe, sem que ninguém ou quase ninguém o note, baloiço pendurado na corda de um sorriso, choro por dentro humidades de gruta, suor de granito, secreto nevoeiro em que me escondo."

pág. 77
"- Eh pá - disse ele para a imagem reflectida, anjo tutelar da sua angústia imóvel sobre um fundo de azulejos -, eh pá, cona da prima, cu da velha ranhosa, tomates do padre Inácio, é mesmo muito fodido ser homem. Não é?"

pág. 80
"Dividido entre a timidez e o desejo o médico assistira em peúgas, abraçado à roupa que não sabia onde pousar, à metamorfose daquela Mata-Hari de pacotilha nem ser semelhante ao monstro de teta hercúlea a rasgar listas telefónicas no circo que passeava na praia, no Verão, os tigres sarnosos da sua miséria de lantejoulas sem brilho. A mulher introduziu-se nos lençóis como uma fatia de fiambre entre duas metades de um pão, e ele, atónito, aproximou-se até tocar a medo na colcha à maneira de quem palpa com os joanetes, em atitude de ballet friorento, a temperatura da piscina. A túlipa do tecto revelava o planisfério de continentes desconhecidos que a humidade desenhava na caliça. O grito impaciente - É para hoje, ó necas?, atirou-o sobre a cama com a veemência sem réplica de um pontapé oportuno, e o psiquiatra perdeu a virgindade ao penetrar, todo ele, num grande túnel peludo, afogando o nariz na almofada semeada de ganchos de cabelo como uma árvore de Natal de flocos de algodão, a que aderiam placas de caspa idênticas a grandes lâminas de gordura."

pág. 86
"Talvez que eu esteja morto, pensou, certamente que morri de modo que nada de importante me pode já acontecer, só a gangrena a roer o corpo por dentro, a cabeça oca de ideias, e lá em cima, a superfície, a mão mole do vento a remexer, à procura, as copas dos ciprestes, num frémito de folhas de jornal velho que se amarrota."

pág. 101
"A Avenida Almirante Reis, eternamente cinzenta, pluviosa e triste ao sol de Julho, balizada alternadamente por ardinas e inválidos, trotava na direcção do Tejo entre duas gengivas de prédios cariados, com um cavalheiro apertado em sapatos novos para a paragem do eléctrico."
(…)
“Salões de cabeleireiro habitado de baratas propunham às donas de casa em mal imaginação soluções capilares imprevistas, a que retrosarias poeirentas daria o toque final de soutiens de renda, mosquiteiros torácicos capazes de rejuvenescerem de erecções formidáveis vinte e cinco anos de resignação conjugal.”

pág. 104
" Os comboios do Cais do Sodré arrastaram para o Estoril os primeiros jogadores e os últimos turistas, noruegueses de indicador perdido no mapa da cidade, e as ruas e o rio principiavam a confluir na mesma paz de Verão, horizontal, que as fábricas do Barreiro coloriam de fumo vermelho operário, antecipação do poente."

pág. 111
"Não havia comida para bebés em Malanje e a nossa filha tornou a Portugal magra e frágil, com a cor amarelada dos brancos de Angola, ferrugenta de febre, um ano a dormir em cama de bordão de palmeira junto das nossas camas de quartel, estava a fazer uma autópsia ao ar livre por via do cheiro quando me chamaram porque desmaiaras, encontrei-te exausta numa cadeira feita de tábuas de barrica, fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo, Até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, certo da certeza de que nada nos podia separar, como uma onda para um praia na tua direcção vai o meu corpo, exclamou o Neruda, e era assim connosco, e é assim comigo só que não sou capaz de to dizer ou digo-te se não estás, digo-te sozinho tonto do amor que te tenho, de mais nos ferimos, nos magoámos, nos tentámos matar dentro de cada um, e apesar disso, subterrânea e imensa, a onda continua e como para a praia na tua direcção o trigo do meu corpo de inclina, espigas de dedos te buscam, tentam tocar-te, se prendem na tua pele com força de unhas, as tuas pernas estreitas apertam-me a cintura, subo a escada, bato o trinco, entro, o colchão conhece ainda o jeito do meu corpo, penduro a roupa na cadeira, como uma onda para a praia como uma onda para a praia na tua direcção vai o meu corpo."

pág. 120
"Por essa época penava na composição de um longo poema péssimo inspirado no Pale Fire de Nabokov, e acreditava existir em si a ampla força do Claudel das Grandes Odes temperada pela contenção de T.S. Eliot: a ausência de talento é uma benção, verificou ele; só que custa a gente habituar-se a isso."

Pág. 133
“Amigo Cesário, disse o psiquiatra com ternura, vi a semana passada qualquer coisa que te traria à boca alexandrinos de alegria: procurava eu sítio onde jantar e passando rente ao teu busto iluminado na berma de relva estefânica em que o puseram, dei com uma velha de preto sentada no degrau da estátua com uma alcofa aos pés, e compreendi então a diferença que vai de ti ao Eça e que é a mesma que separa um abraço a uma virgem de pedra da vizinhança de uma criatura viva, arrancada à solidez da carne dos teus versos.”

pág. 163
"Se vou agora para casa fodo-me, disse ele, não me acho em condições de enfrentar o espelho do quarto de banho e aquele silêncio todo à minha espera, a cama fechada sobre si própria à maneira de um mexilhão pegajoso."

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Círculo de Leitores, 1984 (publicado originalmente em 1979) .

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